Daniela

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Extra... Extra! (Ou: Saulo Eduardo em "Cronicas de um motor depauperado")



Era uma tarde comum de uma 6ª feira mais comum ainda. O sol brilhava e a cidade estava calma. Tinha ido eu para casa almoçar e arrumar minha bagagem para partir, exatamente como faço em toda semana que se finda. Parti com a promessa de Eduardo me buscar na minha residência, por gentilmente se importar com meu bem estar físico.
À medida que o tempo passava, fui percebendo que Eduardo não viria e fiquei preocupada. Eis que então me liga ele afobado e arfando, sem dizer coisa com coisa, numa incoerência que impossibilitava uma compreensão imediata. “O pinto, um pinto, o pinto entrou e me lascou... O meu... O meu... Eu tô com ele parado aqui em casa, tá uma catinga horrível e fazendo um barulho horroroso, a cabeça ficou presa... Eu já liguei pra paínho... Não sei mais o que fazer, acho que vou ter que deixá-lo aqui ou mandá-lo pra João Pessoa com cuidado”. Como eu não compreendi nada do que se passava, me despenquei em desembalada carreira para o local do acidente, já pensando a essa altura tratar-se de um bordel. Pela estrada a fora eu fui bem pensando que cada vez mais a minha teoria de que pinto quando entra errado ou na hora errada, sem ser convidado, só causa estrago. O que me intrigava era o fato de Eduardo, logo Eduardo estar desfrutando desta conclusão.
Por desencargo de consciência e por não saber onde fica a zona da cidade, resolvo passar pela sua casa, quando me deparo com a cena mais desoladora de todos os tempos: uma criatura aflita, com um semblante que seria trágico se não fosse cômico, desesperadamente falando em dois telefones ao mesmo tempo e seu precioso carro com o capô aberto. Eduardo olha pra mim e pronuncia a estranha frase: um pinto entrou e acabou comigo. Eu juro, neste momento pedia a Deus que esta fosse mais uma frase de duplo sentido comumente encontrado em músicas baianas. Olhei o mundo a meu redor - o capô aberto, o olhar desconsolado, um cheiro abominável, uma pequena multidão que se aglomerava nas adjacências do veículo, crianças correndo, ambulantes transitando, uma bandinha tocando, carpideiras chorando, todos olhando à esquerda e derrepente... Tá lá o corpo estendido no chão.
Foi como se o sol mais brilhante estivesse clareando o planeta mais escuro. Montar o quebra-cabeça do pinto de Eduardo me levou ao êxtase! Parte do que um dia foi um infante galináceo jazia decapitado ao longo da sarjeta sob os olhares melancólicos das pessoas. O destempero foi tamanho que ganhou as fronteiras da cidade, ultrapassou a barreira da Universidade e foi bater em Remígio. Foi somente quando a chefe do pobre funcionário-padrão chegou - desbravando a selva de gente, rindo da odisséia e do caos instalado e desfilando no meio do carnaval - que pude finalmente desvendar o efetivo ocorrido: quando paramos na porta do cartório, um pinto ninja arrombou o cadeado da gaiola e penetrou as dependências do motor do carro. Ao ser dada a partida foi pedaço do mesmo para os quatro cantos do além. Isso ocasionou o deslocamento da correia dentada, o superaquecimento do motor e o gelo na espinha do proprietário.
Tomadas as devidas providências para a transferência do doente a um centro de atendimento mais especializado, a situação foi se acalmando, porém a espera se estendeu pela longa tarde. Ficamos esperando, esperando, esperando o trem quando mais à tardinha, quase de 4, aparece  Pinto Pai reclamando o corpo do ente querido, gritando e fazendo algazarra, clamando por justiça e desferindo sua fúria. Ordenado que ficasse quieto, pois o sol não havia se posto, mesmo sendo ele o galo da madrugada não podia dar nem um piu-piu, sob pena de ir para a panela. O dito cujo só baixou a crista quando a ambulância chegou para resgatar o enfermo e transportar seu já letárgico dono.
Finda tortura, partimos daquele inferno e vimos o sol se por em tons púrpuros na boléia de um caminhão, desbravando os tortuosos e curvilíneos caminhos até a capital, por um purgatório nunca Dante navegado. Por fim, quando pensamos ter encontrado o paraíso, vimos que o brejo não era tão ruim assim. Ao chegarmos à porta da concessionária fomos barrados na Disneylandia. Imploramos para entrar, alegando que até o pinto tinha entrado todo. Impedidos, vimos caminhões e carros apressados a passar por nós e ficamos a beira do caminho - a esperar - de mala, cuia e na companhia de um discreto ventilador. E ali, amaldiçoando quase todos os pintos do planeta, terminamos a noite na esperança de que a luz da lua abrandasse o coração dos cuidadores e que por fim iluminasse futuro incerto do automóvel imolado!
Areia, 19.11.2010

2 comentários:

  1. ESSE CONTO E UMA PRECIOSIDADE PARA A LITERATURA.
    PARABENS MUITO BEM PRODUZIDO.
    SEM CONTAR QUE ESTA FOI A HISTORIA DA SEMANA.

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